ANA PATRÍCIA R. PIMENTEL[1]
(coautora)
RESUMO: A necessidade e a busca por oportunidades de trabalho fazem com que muitos indivíduos busquem o seu sustento e de sua família através de diversas formas de labor. Nos últimos anos, a atuação de motoristas e entregadores de aplicativo tem chamado a atenção da sociedade e de todos os envolvidos com o Poder Judiciário, haja vista que são questionáveis a natureza desses contratos de trabalho. Diante das características que acercam essa atuação profissional, existem celeumas jurídicas consiste em verificar quais são os mais recentes entendimentos legais e jurisprudenciais sobre a situação dos motoristas e entregadores de aplicativo, especialmente quanto à caracterização ou não de vínculo de emprego. Em decorrência da forma como se dá o exercício da atividade, via de regra, são considerados trabalhadores autônomos, no entanto, existem diversas decisões que vão de encontro com esse entendimento e reconhecem o vínculo de emprego. Diante disso, esta pesquisa objetiva analisar acerca do trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativos segundo a legislação trabalhista em vigência, com enfoque no movimento crescente de projetos legislativos de regulamentação da matéria, para pôr fim da celeuma sobre a natureza desses contratos de trabalho. Elaborado segundo o método dedutivo de pesquisa bibliográfica, ao final, o artigo indica os posicionamentos majoritários ao mesmo tempo em que apresenta uma solução à celeuma existente, qual seja, a aprovação do Projeto de Lei do Senado nº 1.615/2022, que apresenta uma regulamentação do trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativo no Brasil.
Palavras-chave: Aplicativo. Direito trabalhista. Entregadores. Motoristas. Regulamentação.
ABSTRACT: The need and search for work opportunities means that many individuals seek to support themselves and their families through different forms of work. In recent years, the actions of app drivers and delivery people have drawn the attention of society and everyone involved with the Judiciary, given that the nature of these employment contracts is questionable. Given the characteristics that surround this professional activity, there are legal disputes consisting of verifying the most recent legal and jurisprudential understandings on the situation of drivers and app delivery people, especially regarding the characterization or not of an employment relationship. Due to the way in which the activity is carried out, as a rule, they are considered self-employed workers, however, there are several decisions that are in line with this understanding and recognize the employment relationship. Therefore, this research aims to analyze the work of app drivers and delivery people according to current labor legislation, focusing on the growing movement of legislative projects regulating the matter, to put an end to the controversy over the nature of these employment contracts. Prepared according to the deductive method of bibliographical research, at the end, the article indicates the majority positions while presenting a solution to the existing controversy, namely, the approval of Senate Bill No. 1,615/2022, which presents a regulation of the work of app drivers and delivery people in Brazil.
Keywords: Drivers. Couriers. Application. Regulation. Rights.
Sumário: 1. Introdução. 2. A Caracterização do vínculo de emprego e suas garantias legais. 3. O trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativo: relação de emprego ou relação de trabalho? 4. A regulamentação da atividade laboral dos motoristas e entregadores de aplicativo. 5. Considerações Finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Compete ao ordenamento jurídico nacional ser atualizado em consideração às situações vivenciadas diariamente pelos jurisdicionados, especialmente no que compete as mudanças relacionadas às formas de trabalho firmadas pelos indivíduos em sociedade, a fim de que nenhuma atividade permaneça sem proteção aos envolvidos.
Nos últimos anos, uma forma de contratação tem crescido significantemente, surgindo a partir desses vínculos de trabalho, uma série de conflitos em relação aos direitos de contratantes e contratados. Essa forma consiste na atuação dos entregadores e motoristas de aplicativos.
Normalmente contratados com liberdade de atuação, os motoristas possuem uma certa autonomia em relação à sua jornada de trabalho, podendo acessar os aplicativos quando tiver disponibilidade, realizando o número de viagens que entender viável, faturando de acordo com a sua “produtividade”. Ocorre que, por outro lado, laborando “por conta própria” não existe segurança no trabalho em relação aos contratantes. Por não se enquadrar no contrato de emprego, os motoristas se veem desamparados em relação a direitos que os demais empregados possuem.
O problema que norteia o estudo jurídico consiste em verificar quais são os mais recentes entendimentos legais e jurisprudenciais sobre a situação dos motoristas e entregadores de aplicativo, especialmente quanto à caracterização ou não de vínculo de emprego.
Considerando as celeumas que surgiram com o avançar dos últimos anos, a presente pesquisa tem como objetivo analisar acerca do trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativos segundo a legislação trabalhista em vigência, com enfoque no movimento crescente de projetos legislativos de regulamentação da matéria, para pôr fim da celeuma sobre a natureza desses contratos de trabalho.
Para tanto, realizada na forma de revisão de literatura, a pesquisa utiliza-se da análise qualitativa dos textos bibliográficos selecionados, expressados mediante citação de doutrinadores, estudiosos e informações veiculadas na mídia nacional. O estudo apresenta também os dispositivos legais aplicáveis e as jurisprudências proferidas pelos tribunais nacionais.
Elaborado segundo o método dedutivo, o artigo científico parte de uma noção geral acerca da relação de emprego no Brasil, seus requisitos e efeitos, para então avançar para a situação dos motoristas e entregadores de aplicativo, concluindo com a apresentação das propostas de regulamentação em tramitação no Congresso Nacional.
Este trabalho procura fazer uma contribuição na área de direitos trabalhistas dos motoristas e entregadores de aplicativo, matéria de interesse não apenas individual, mas também social.
2 A CARACTERIZAÇÃO DO VINCULO DE EMPREGO E SUAS GARANTIAS LEGAIS
Para se ter uma noção sobre quais os direitos que um indivíduo possui em relação ao labor que executa, a princípio, é preciso identificar a natureza dessa relação, se a mesma é de emprego ou apenas de trabalho, posto que, em cada uma dessas situações os efeitos jurídicos são diferentes.
Relação de trabalho é a relação jurídica em que o prestador dos serviços é uma pessoa natural, tendo por objeto a atividade pessoal, subordinada ou não, eventual ou não, e que é remunerada (ou não) por uma outra pessoa natural ou pessoa jurídica. Portanto, relação de trabalho é o gênero, sendo a relação de emprego uma de suas espécies. (JORGE NETO e CAVALCANTE, 2019, p. 323 -324)
Isto porque um dos conceitos acima é mais abrangente que o outro. Portanto, a relação de emprego é uma espécie de relação de trabalho, conforme ensina o mestre Mauricio Godinho Delgado:
A Ciência do Direito enxerga clara distinção entre relação de trabalho e relação de emprego. A primeira expressão tem caráter genérico: refere‑se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano modernamente admissível. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de labor (como trabalho de estágio, etc.). Traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual (DELGADO, 2017, p. 309).
O professor destaca que a relação de emprego consiste em um tipo legal próprio e específico, que não se confunde com as demais modalidades de relação de trabalho (DELGADO, 2017). A definição legal do vínculo empregatício está contida no artigo 3º da CLT:
Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Parágrafo único - Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual. (BRASIL, 1943)
Em síntese, haverá uma relação de emprego quando haver um contrato baseado na legislação, em que de um lado encontra-se uma pessoa física que presta o serviço e de outro o empregador, que pode ser pessoa física ou jurídica, atendidos os requisitos da pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade (JORGE NETO e CAVALCANTE, 2019).
Uma vez empregado, o trabalhador é titular de direitos que compreendem, além da anotação de sua CTPS, o recebimento de salário, o décimo terceiro, o gozo de férias, o descanso semanal remunerado, o recolhimento do FGTS pelo empregador, as horas extraordinárias, adicionais de periculosidade e insalubridade; e, em caso de dispensa, o saque do FGTS, a habilitação ao seguro-desemprego e o recebimento do aviso prévio.
Além desses direitos, as normas e convenções coletivas de trabalho podem prever outros direitos devidos a determinada categoria de trabalhador.
Em razão das garantias decorrentes do vínculo de emprego é que muitos buscam a contratação nos moldes da CLT, uma vez que, ausentes os requisitos legais, na relação de emprego, muitos direitos não se observam, permanecendo os trabalhadores desamparados em situações de necessidade.
No entanto, nem sempre o vínculo empregatício se concretiza, mas a relação de trabalho se firma entre as partes, é o que se dá com a categoria dos trabalhadores autônomos, cuja contratação afasta a qualidade de empregado, conforme determina o artigo 442-B da mencionada CLT: “ A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3o desta Consolidação” (BRASIL, 1943).
Neste interim, a situação vivenciada pelos motoristas e entregadores de aplicativo precisa ser melhor analisada, já que aparentemente exercem seu labor de forma autônoma.
3 o trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativo: relação de emprego ou relação de trabalho?
Antes de adentrar especificamente no âmbito jurídico da relação de trabalho existente entre os motoristas e entregadores de aplicativo, compete apresentar um quadro geral sobre a utilização desses serviços nos últimos anos, bem como o surgimento de lides de natureza trabalhistas decorrentes dessas relações laborais.
A atuação entregadores e motoristas é uma atividade existente há muitos anos, presente no cotidiano dos brasileiros que eventualmente contratam taxistas, moto-taxistas e serviços de delivery de produtos. Contudo, nos últimos anos, a contratação desses serviços mediante utilização de aplicativos gerou, por outro lado, a atuação de pessoas na forma autônoma de prestação de seu labor, mediante contrato de trabalho divergente do especificado no artigo 3° da CLT.
Esses trabalhadores estão inseridos na chamada gig economy, termo que caracteriza relações laborais entre funcionários e empresas que contratam mão de obra para realizar serviços esporádicos e sem vínculo empregatício, principalmente por meio de aplicativos. Os trabalhadores atuam como autônomos (TOKARNIA, 2022, p. 01).
Esses trabalhadores gerem seu trabalho sem controle direto, sendo que, os veículos utilizados são de sua posse ou propriedade, com despesas por eles custeadas. Nesses casos, a remuneração advém do valor recebido pelas entregas e pode variar de acordo com a produtividade por ele alcançada.
Nestes termos, os entregadores e motoristas que prestam serviços para empresas como a Uber, a iFood, a Loggi e a Rappi fazem parte do que chamamos “trabalhadores por aplicativo”, sendo esta nomenclatura decorrente do fato do aplicativo instalado no aparelho celular dos trabalhadores ser o principal meio de produção utilizado para gerenciar, organizar e controlar os processos de trabalho desempenhados. Nesta forma de trabalho, as empresas responsáveis pelo serviço se apresentam como mediadoras do encontro entre trabalhadores autônomos com consumidores, cobrando uma porcentagem do serviço prestado decorrente deste encontro. (AMORIM e MODA, 2021, p. 108).
De acordo com especialistas, o crescimento desse tipo de trabalho autônomo se deve às condições econômicas vivenciadas na última década. Em 2019, os dados fornecidos pelo IBGE e divulgados pela Central Única de Trabalhadores já apontavam um aumento dessa forma de labor:
Com a economia patinando, as taxas recordes de desemprego e o aumento da oferta de emprego precário e mal remunerado, o número de brasileiros trabalhando em veículos registrou a maior alta desde 2012, início da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em 2018, um total de 3,6 milhões de brasileiros estava trabalhando como motoristas de aplicativos, taxistas ou cobradores de ônibus. O aumento em relação a 2017 foi de 29,2%, ou 810 mil trabalhadores e trabalhadoras a mais fazendo bicos para sobreviver, de acordo com pesquisa divulgada pelo IBGE.
De acordo com a pesquisa, o total de pessoas trabalhando em local designado pelo empregador, patrão ou freguês, grupo que inclui os entregadores em geral também registrou a maior alta desde 2012. São 10,1 milhões em 2018 nessa condição, uma alta de 9,9% em relação a 2017, equivalente a 905 mil pessoas a mais (CUT, 2019, p. 01).
Os números mais recentes publicados pelo Ipea no ano de 2021 apontaram os seguintes dados: aproximadamente 1,5 milhão de pessoas trabalhando com transporte de passageiros e entrega de mercadorias, sendo que mais de 60% deles são motoristas de aplicativos ou taxistas; 20% entregam mercadorias em motocicletas e 14% trabalham como moto-taxistas (TOKARNIA, 2022).
Ocorre que, apesar de ser crescente o número de trabalhadores, tal fato não exclui a precariedade em que esses serviços são contratados, principalmente porque se dão, na maioria das vezes, na informalidade, e tornaram-se mais escassos com o aumento de prestadores de serviços. Outro problema vivenciado consiste no desamparo em caso de adoecimento, dano no veículo, entre outras situações.
O surgimento dessas questões levou para o Poder Judiciário a responsabilidade de analisar esses contratos a fim de indicar qual a natureza dessa contratação e quais seriam os direitos que os trabalhadores possuem diante das situações vivenciadas no seu cotidiano.
Em que pese os motoristas tenham autonomia no desempenho de suas atividades perante as empresas de aplicativos, não são raras as situações em que essas pessoas buscam a responsabilização de seus contratantes diante das características em que o labor é desempenhado, especialmente quando há violação aos preceitos legais.
Primeiramente, importa verificar qual é a espécie do trabalho desempenhado:
Assim, a prestação de trabalho pode emergir como uma obrigação de fazer pessoal, mas sem subordinação (trabalho autônomo em geral); como uma obrigação de fazer sem pessoalidade nem subordinação (também trabalho autônomo); como uma obrigação de fazer pessoal e subordinada, mas episódica e esporádica (trabalho eventual). Em todos esses casos, não se configura uma relação de emprego (ou, se se quiser, um contrato de emprego). Todos esses casos, portanto, consubstanciam relações jurídicas que não se encontram, em princípio, sob a égide da legislação trabalhista (CLT e leis esparsas) e, até o advento da EC n. 45/2004 (novo art. 114, CF/88), nem se encontravam, regra geral, sob o manto jurisdicional da Justiça do Trabalho (DELGADO, 2017, p. 311).
Via de regra, o labor de motoristas e entregadores de aplicativo não se enquadra como relação de emprego, porque não preenche todos os requisitos exigidos pelo artigo 3º da CLT, levando a improcedência dos pedidos dessa natureza. Exemplo do entendimento majoritário, é o aresto proferido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região:
ENTREGADOR DE MERCADORIAS. VÍNCULO DE EMPREGO NÃO RECONHECIDO. AUSÊNCIA DE SUBORDINAÇÃO JURÍDICA E DE PESSOALIDADE NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. O conjunto probatório demonstrou que não havia subordinação jurídica na prestação de serviços acordada entre as partes, estando ausente também a pessoalidade, pois o prestador poderia substituir-se por terceiros. O acervo probatório não autoriza a procedência do pedido, porquanto demonstrado que estão ausentes os requisitos previstos nos artigos 2º e 3º da CLT. Vínculo de emprego não reconhecido. (TRT3- Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região – Recurso Ordinário Trabalhista: RO XXXXX-39.2021.5.03.0101 MG. Nona Turma. Relator: Desembargador Weber Leite de Magalhães Pinto Filho, publicado em 16 de dezembro de 2021).
O mesmo entendimento foi exarado pelo Tribunal do Trabalho da 4ª Região, que no julgamento de um Recurso Ordinário, fundamenta a inaplicabilidade das regras da relação de emprego com base na liberdade da rotina e também por ausência de comprovação do requisito da pessoalidade:
RECURSO ORDINÁRIO DO RECLAMANTE. ENTREGADOR DE MERCADORIAS. VÍNCULO DE EMPREGO. NÃO RECONHECIDO. Ausentes os requisitos dos arts. 2º e 3º, CLT, quando o trabalhador labora como entregador de mercadorias sem que comparecesse à sede da reclamada, organizando ele mesmo a sua rotina, com ampla liberdade. Ademais, não é possível extrair a existência de qualquer impeditivo para que o reclamante se fizesse substituir na prestação do serviço. Provimento negado. (TRT4 – Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Recurso Ordinário Trabalhista. ROT XXXXX-54.2017.5.04.0663. Décima Turma).
Ao julgar a Reclamação 59.795 de Minas Gerais, o Supremo Tribunal Federal (STF) cassou uma decisão do TRT da 3ª Região, que havia reconhecido o vínculo de motorista de aplicativo ao considerar a forma em que era exercida a atividade laboral. No caso em questão a relação com a Cabify era exercido sem exigência mínima de labor, faturamento ou número de viagens, sem punição pela decisão do motorista. Segundo o Ministro Alexandre de Morais, o vínculo mais se assemelha à situação prevista na Lei 11.442/2007 do transportador autônomo cuja relação é comercial, motivo pelo qual deveria ser analisado pela justiça comum e não a do trabalho. (STF, 2023)
O entendimento apontado é o majoritário, mas não é unânime na doutrina, tampouco na jurisprudência, já que existem posições contrárias entre os especialistas em direito do trabalho, posto que, de um lado estão os que apontam a relação e emprego, enquanto outros afirmam ser trabalhadores autônomos (MAZZOTTO, 2022).
Ao julgar um caso em primeira instância, uma magistrada do Estado do Rio Grande do Sul, mais precisamente da 4ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, constatou o preenchimento dos requisitos da relação de emprego de um motorista com a Uber.
Baseado em provas documentais e testemunhais o vínculo foi reconhecido a partir da atuação na Uber. Mesmo com a alegação da empresa de que o trabalho era autônomo, podendo aceitar ou não o serviço e os horários de trabalho, na prática a situação era diversa, posto que o aplicativo fixa parâmetros e impõe punições de acordo com o tempo em que o trabalhador está “online”, de modo que o tempo de volante se relaciona diretamente com as promoções e ganhos na plataforma. Entendeu a magistrada que é a empresa que direciona os locais de comparecimento, estabelece o valor do trabalho e determina as condições de realização da atividade, incluindo as especificidades que o veículo deve conter; a empresa também é a responsável pelo pagamento da remuneração, caracterizada a pessoalidade e onerosidade. Por fim, quanto à subordinação, a mesma se caracteriza pela inserção do trabalhador no objetivo empresarial, e que, tendo dois polos na relação laboral, há de um lado quem admite, assalaria e dirige a atividade (Uber) e do outro quem presta o serviço não eventual e sob dependência (trabalhador). (MACHADO, 2023).
Desta forma, existem situações reais de reconhecimento de vínculo de emprego entre motoristas e entregadores e a empresa de aplicativo para quem prestam seus serviços. No exemplo a seguir, restaram provados todos os requisitos da relação segundo a CLT, considerando-se principalmente as características da atividade, marcada pela condição em que se dá a contratação.
MOTORISTA DE APLICATIVO. VÍNCULO DE EMPREGO. CONFIGURADO. [...]No caso, não obstante as alegações defensivas da reclamada, sua atividade não se limita a disponibilizar aplicativo para aproximação do motorista e do passageiro, mas, sim, visa à prestação de serviços de transporte. Basta ver que toda a lucratividade da empresa decorre de percentual dos valores recebidos pelos motoristas, em função das corridas realizadas. [...] Nesse cenário, infere-se que a reclamada molda o comportamento dos motoristas, por meio do seu algoritmo de programação, no qual insere suas estratégias de gestão, o que significa, portanto, controle, fiscalização e comando. Obviamente, a padronização de serviços atende aos fins empresariais, revelando-se uma forma de subordinação jurídica. E a possibilidade de interromper a oferta de corridas, ainda que por curtos períodos, é espécie de suspensão dos serviços, em outras palavras, punição, o que também faz denotar a existência de subordinação. Não há negociação entre o trabalhador e a reclamada. O valor é ditado pelo algoritmo, de acordo com a programação da aplicação proprietária. [...]Ao motorista, resta apenas atender aos chamados e seguir os critérios exigidos pela plataforma. Se ao autor não cabe a escolha dos valores de seu serviço, nem as condições com que o serviço será executado, não há autonomia no contrato. Por estes motivos, reconheço o vínculo de emprego entre as partes. Dou provimento ao apelo do autor. (TRT2 – Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região: XXXXX-36.2021.5.02.0054 SP. Primeira Turma – Cadeira 3. Relator: Moises dos Santos Heitor. Publicado em 01/12/2021).
Neste sentido, uma decisão proferida pela 3ª Turma do TST reabriu a discussão até então sedimentada, ao reconhecer o vínculo de emprego entre um motorista e a Uber, ao julgar o Recurso de Revista nos autos 100353-02.2017.5.01.0066. “Para a maioria do colegiado, estão presentes, no caso, os elementos que caracterizam a relação de emprego: a prestação de trabalho por pessoa humana, com pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação” (TST, 2022).
Ato contínuo, outros casos foram julgados de forma favorável aos motoristas e entregadores, o que denota uma tendência em regulamentar certas relações laborais a fim de reduzir as violações de direitos trabalhistas e fundamentais.
Uma das formas recentes de caracterização da contratação de motoristas e entregadores por empresas de aplicativo consiste no contrato intermitente de trabalho, que, apesar de possuir regras diversas, trata-se de modalidade submetida às regras da CLT e por isso gera uma série de direitos laborais.
No contrato intermitente, o requisito da habitualidade é flexibilizado, de modo que a pessoa receberá ordens, pagamentos e ser a única a executar o serviço, que, conforme diz o parágrafo 3º do artigo 443 da CLT, a prestação de serviços se dá com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade (BRASIL, 1973).
A CLT dita uma série de regras sobre como os contratos de intermitência devem ser regidos. O empregado deve ser convocado por qualquer meio de comunicação – o artigo 452-A da CLT fala que isso deve acontecer com, no mínimo, três dias de antecedência. Então, o empregado tem até um dia para responder à solicitação; se não o fizer, é como se tivesse recusado, automaticamente. É permitido ao trabalhador recusar a oferta, o que não descaracteriza a subordinação. Caso ele aceite, mas não cumpra o serviço, deve pagar 50% do valor da remuneração. O pagamento não pode ser menor do que o salário mínimo por hora – embora, ao longo de um mês, o valor possa ser inferior à remuneração mínima mensal, se ele trabalhar menos do que oito horas diárias. Por outro lado, o trabalhador poderia ter múltiplos empregos para preencher o tempo em que está inativo. Diferentemente do vínculo tradicional, os benefícios são pagos após cada período, então, além da remuneração, são incluídas as parcelas proporcionais de férias, 13º salário e folgas remuneradas. [...] As características do trabalho intermitente, para alguns magistrados, são aplicáveis aos trabalhadores de aplicativos (PAIVA, 2022, p. 1).
Dos apontamentos apresentados, tem-se que em uma primeira análise, os motoristas e entregadores de aplicativos são considerados trabalhadores autônomos, contudo, nada impede que o trabalhador busque o reconhecimento do vínculo de emprego, posto que, cada situação pode ser analisada judicialmente a fim de constatar se tratar ou não de uma relação de emprego.
Urge destacar que, uma vez reconhecida a relação de emprego, existe ainda a possibilidade de incidência do adicional de periculosidade para os entregadores, conforme o artigo 193, §4º: “São também consideradas perigosas as atividades de trabalhador em motocicleta” (BRASIL, 1943).
4 a REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE LABORAL DOS MOTORISTAS E ENTREGADORES DE APLICATIVO
Em um primeiro momento, a atuação de motoristas e entregadores de aplicativo se apresenta uma ótima oportunidade laboral, haja vista a liberdade que tais indivíduos possuem de delimitação de sua jornada de trabalho, bem como de faturamento. Todavia, na prática, muitos desses trabalhadores apontam a precariedade da contratação, seja pelas dificuldades impostas no desempenho do labor, mas especialmente no tocante à segurança e a medicina do trabalho.
Em seu cotidiano, os motoristas e empregadores, caso se acidentem ou passem por situações de violência no desempenho da atividade, devem arcar com seus prejuízos materiais, posto que proprietários dos veículos utilizados, atuando apenas como prestadores do serviço de entrega e transporte.
Em sua defesa, quando questionados acerca dos direitos dos trabalhadores, as empresas de aplicativo se defendem sob a alegação de “estarem registradas no setor de tecnologia, colocando como de sua responsabilidade apenas a manutenção da infraestrutura digital que permite este “encontro” entre trabalhadores e consumidores” (AMORIM e MODA, 2021, p. 108).
Por não se enquadrar automaticamente como uma relação de emprego é urgente a regulamentação do trabalho dessa categoria, mediante legislação específica, a fim de que as garantias mínimas sejam dadas aos trabalhadores, especialmente no que se refere à medicina e segurança do trabalho (BRITO, 2022).
A solução para as discussões podem ser a regulamentação através de uma legislação específica, o que já está em curso no Brasil.
Tramitam no Congresso Nacional mais de 60 projetos de lei que buscam assegurar proteções para os que trabalham por aplicativos – motoristas, entregadores, designers, tradutores, redatores, profissionais de manutenção e tantos outros. A grande maioria dos referidos projetos procura estender as regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) aos trabalhadores por aplicativos: salário mínimo, 13º salário, férias, adicionais por periculosidade e insalubridade, licenças remuneradas, etc. (PASTORE, 2021, p. 01).
Dentre as variadas propostas, resultado de toda a divergência jurídica acerca do tema, tramita no Congresso Nacional, oriundo do Senado Federal, o Projeto de Lei nº. 1.615, de 2022, que em sua ementa apresenta: “Dispõe sobre o trabalho dos prestadores de serviços com uso de aplicativos de entrega de mercadorias ou transporte individual ou compartilhado privado e estabelece limites e regras para a realização dessas modalidades de trabalho e dá outras providências” (PL 1.615/2022).
Sobre o Projeto em comento, assim é apresentado pela Agência Senado:
Projeto de lei (PL 1.615/2022) do senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) propõe regularizar o serviço de entregas de mercadorias e transporte individual ou compartilhado privado feito por aplicativos. As regras e medidas têm objetivo de profissionalizar o trabalho, gerar mais segurança econômica e social aos trabalhadores, e exigir uma gestão mais transparente.
As regras propostas no PL são contribuição das empresas para Previdência Social (virá da taxa limitada de desconto sobre o apurado que é 25% em cima dos ganhos do serviço); sindicatos, associações e cooperativas, organizadas em âmbito municipal, que defendem os direitos desses trabalhadores; cadastro das empresas no Ministério do Trabalho com apresentação de relatórios da situação empresarial; canais de atendimento e suporte; e equipamentos de segurança para o exercício do trabalhador.
O senador argumenta que há desamparo por parte das organizações, como Uber e 99, a motoristas, motociclistas e ciclistas de aplicativos. Segundo ele, há falta de transparência e por causa da inteligência dos algoritmos, as empresas que exploram essas atividades continuam gerando lucros bilionários. (AGENCIA SENADO, 2022, p. 1)
Por sua vez, a justificativa apresentada pelo autor, Senador Jorge Kajuru, até então do Podemos, do Estado de Goiás, destaca a precariedade do labor de entregadores e motoristas de aplicativos, sem reajustes há anos, enquanto os aplicativos têm mantido elevado faturamento. A insegurança da relação de trabalho também é apontada ao Congresso Nacional para fundamentar o pedido de aprovação da nova lei:
Motoristas, motociclistas e ciclistas de aplicativos estão, a maioria deles, há 7 (sete) sete anos sem um reajuste em suas tarifas. Enquanto isso, graças a total falta de transparência e ao uso inteligente dos algoritmos, as empresas que exploram essas atividades continuam gerando lucros bilionários. [...] Esses trabalhadores nunca sabem quanto receberão por suas corridas. São iludidos. Trabalhar nas horas de maior fluxo pode significar apenas mais lucros para os intermediários, nada a mais para o motorista. Dados que aparecem no cartão de crédito surgem com descontos absurdos, o dinheiro some. Há uma insegurança total nesses contratos. Um dos lados domina o caixa, a oferta de serviços, cobra valores de comissões, prêmios aos clientes, desconta, enfim, do motorista, o que quiser. Pior ainda, jogam os riscos do negócio para os motoristas, quando podem. São contratos muito piores do que aqueles que eram chamados de leoninos. Nessa linha de aperto econômico, o seguro de um carro usado para trabalhar como aplicativo acaba custando o dobro do que o seguro de um carro comum de passageiros. Tudo por conta do motorista. Havendo problemas, basta excluir o motorista dos quadros e haverá outros, sempre prontos a sonhar com dois salários-mínimos por mês, até que o carro acabe. Os trabalhadores dos quais falamos possuem dificuldades de inserção na Previdência Social. Muitos se registram como MEI. (PL 1.615/2022)
O texto inicial do Projeto é composto de seis artigos de lei, dentre os quais, além da limitação percentual das taxas, deduções ou comissões, merece destaque o artigo 4º, que prevê instrumentos de fiscalização das empresas ao mesmo tempo em que estabelece a obrigatoriedade de medidas de segurança para os trabalhadores, determinando o fornecimento de Equipamento de Proteção Individual, por exemplo.
Eis o mencionado dispositivo:
Art. 4º As empresas que operam ou pretendem operar com plataformas digitais, para o oferecimento de serviços de transporte individual ou compartilhado ou entrega de mercadorias deverão inscrever-se junto ao Ministério do Trabalho e Previdência, possuir endereço conhecido, representante legal, capital social ou garantias bancárias compatíveis com a movimentação financeira e os riscos envolvidos
§ 1º Ao Ministério do Trabalho e Previdência e aos representantes dos associados, sindicatos e cooperativados, as empresas citadas no caput deverão apresentar relatórios auditáveis e periódicos, no mínimo a cada trimestre, com os dados relativos à formação dos preços e algoritmos das corridas e das entregas.
§ 2º As contratadoras ou intermediárias deverão fornecer extrato mensal e individual aos prestadores de serviços, com a prestação de contas relativa a todos os serviços prestados, valores recebidos e descontos efetuados.
§ 3º As empresas prestadoras de serviços de transporte individual ou compartilhado ou entrega de mercadorias, intermediados por aplicativos, deverão disponibilizar um número telefônico para ligações gratuitas com reclamações, sugestões, dúvidas ou emergências de segurança ou saúde, entre outras informações.
§ 4º O fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual e o pagamento de um seguro de acidentes pessoais, coletivo ou individual, são de responsabilidade das empresas prestadoras de serviços, de transporte individual ou compartilhado ou entrega de mercadoria, intermediados por aplicativos (PL 1.615/2022).
Por ter sido apresentado em junho do ano de 2022, o Projeto de Lei ainda encontra-se nas fases iniciais de tramitação perante o Congresso Nacional, uma vez que, sequer foi apreciado pelo Plenário do Senado Federal, necessitando ainda passar pela Câmara dos Deputados para posterior sanção pelo Presidente da República.
Quando surgiu no Brasil e no mundo, a atuação dos motoristas e entregadores por aplicativo se apresentou uma maravilhosa oportunidade de trabalho, não apenas para aqueles que se encontravam desempregados, mas também para todas as pessoas que precisavam complementar a sua renda mensal de alguma forma. Com isso, muitos aderiram ao labor em aplicativos, ainda que de forma experimental.
Por não haver obrigatoriedade no cumprimento de jornada e por não ter limites no faturamento do prestador de serviço, muitos indivíduos ingressaram nessa modalidade de trabalho. Com o tempo, o número de trabalhadores nessa condição aumentou significativamente, já tendo ultrapassado um milhão e meio no Brasil.
O passar dos anos e a concorrência elevada deixaram evidente a precariedade em que esses contratos são realizados. Celebrados através da adesão às regras do aplicativo, é responsabilidade exclusiva do trabalhador a manutenção do veículo, bem como pode vir a ser responsabilizado por eventuais danos causados a terceiros. Essa autonomia tem sobrecarregado os motoristas, ao passo que os contratantes apenas se beneficiam com o lucro da atividade.
Sem recolhimentos previdenciários e garantias no tocante à medicina do trabalho, uma vez vitimados por acidentes ou qualquer empecilho no desempenho de sua atividade, o trabalhador se vê desamparado em caso de suspensão da atividade, o que prejudica não apenas o seu sustento, mas também o da sua família.
Todas essas situações, aliados às condições individuais de cada motorista ou entregador de aplicativo, levaram a problemática até a Justiça do Trabalho que, de forma majoritária, não reconhece o vínculo de emprego desses trabalhadores, no entanto, não impossibilita o seu reconhecimento mediante a demonstração dos requisitos de pessoalidade, subordinação, não eventualidade e onerosidade.
Certo é que, diante das divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca da matéria, somente a regulamentação específica do contrato de trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativo é que surtirá efeitos perante toda a categoria dos trabalhadores.
Em razão disso é que tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado nº 1.615 de 2022, apresentado pelo Senador Jorge Kajuru, do Podemos do Estado de Goiás, cujo teor prevê instrumentos de controle, fiscalização, limites de taxas, deduções ou comissões por parte da empresa proprietária do aplicativo, e dá outras providências. A matéria ainda levará tempo para ser solucionada de fato, mas é preciso destacar que a discussão jurídica em andamento é de muita relevância para a sociedade.
Sendo assim, o tema aqui abordado interessa aos trabalhadores, a sociedade que usufruirá dos serviços prestados, a comunidade e a família dos motoristas e entregadores de aplicativo e também todos os juristas que direta ou indiretamente podem ser confrontados com situações reais de violação de direitos laborais, humanos e fundamentais.
Enquanto não sancionada uma legislação específica, esta pesquisa tem o condão de esclarecer aos leitores os direitos que o trabalhador pode vindicar da justiça, para que não seja prejudicado pela contratação precária de seus serviços como motorista e entregador de aplicativo.
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[1] Graduada em Direito pela Universidade Regional de Gurupi (2003). Especialista em Direito Tributário, Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e Especialista em Direito Civil e Processo Civil, ambos pela Fundação Universidade do Tocantins - UNITINS. Mestre em Prestação Jurisdicional e Direito Humanos pela Universidade Federal do Tocantins - UFT. Professora Adjunta, vinculada mediante Concurso Público, a Fundação Universidade Federal do Tocantins - UFT. Tem experiência como docente na área de Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário.
Bacharelanda em Direito pela Universidade De Gurupi - UNIRG. Pós graduanda em Direito e Processo do Trabalho - UFT
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, JANNIELLY NERES SARAIVA. A regularização do trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 out 2023, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /63561/a-regularizao-do-trabalho-dos-motoristas-e-entregadores-de-aplicativo. Acesso em: 28 dez 2024.
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